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Silêncio performático

As performances funcionam como atos

vitais de transferência, transmitindo saber social,

memória e sentido de identidade através

de ações reiteradas.

Taylor, 2011

No Uruguai, a cada 20 de maio, uma multidão de corpos reclama no espaço público verdade e justiça pelas pessoas desaparecidas pelo terrorismo de Estado. Este ano, entretanto, a pandemia impossibilitou a presença física, mas isso não significou ausência. Através do espaço virtual e nas fronteiras entre o público e o privado as pessoas “estiveram” e o silêncio-grito foi, talvez, mais forte do que nunca.


Francesca Cassariego

A Marcha do Silêncio é uma mobilização que começou a se realizar em 1996 para reclamar memória, verdade e justiça. Exige respostas sobre os paradeiros de centenas de pessoas sequestradas-desaparecidas entre 1968 e 1985, um período marcado pelo terrorismo de Estado no Uruguai e em outros países do cone sul. Realiza-se a cada 20 de maio, porque esse dia, mas de 1976, apareceram em Buenos Aires os corpos alvejados do Senador da Frente Ampla, Zelmar Michelini, do deputado do Partido Nacional, Héctor Gutiérez Ruiz, e dos/das militantes Rosario Barredo e William Whitelaw.

Nesta mobilização, impulsionada por Mães e Familiares de Uruguaios Detidos Desaparecidos, o silêncio é o mecanismo para evocar a indignação, a angústia e o descontentamento pelas pessoas desaparecidas. Entretanto, depois de 25 anos, marchar e de mais de 40 de silêncio político, as mães continuam indo sem conseguir que se esclareçam os desaparecimentos e assassinatos impunes, e a sustentação dessa luta fica nas mãos das novas gerações.

A manifestação em Montevidéu começa em Juan D. Jackson e Avenida Rivera (onde se encontra o Monumento aos Detidos Desaparecidos da América Latina) e leva adiante a faixa com o anúncio escolhido. Os manifestantes caminham em silêncio total, portando unicamente 197 fotos com os nomes de cada um/a dos desaparecidos/as. Finaliza na Praça Liberdade e, ao chegar, nomeiam-se uma a uma as pessoas desaparecidas enquanto respondem ao mesmo tempo: Presente! A 25o Marcha foi particular pela emergência sanitária, a recomendação do distanciamento social foram outras; contudo, cumpriu-se o rito e estivemos presentes.

A Marcha do Silêncio é uma das mais multitudinárias mobilizações do Uruguai e, com o passar do tempo, começam a se somar gerações que não viveram a ditadura, mas sentem o silêncio que existe em relação a este assunto e se fazem eco dele, saindo à rua e exigindo justiça. Esta mobilização funciona, de alguma maneira, como um mecanismo de ressignificação e reapropriação para as novas gerações.

Os corpos presentes no espaço público reclamam os corpos ausentes, transitam pela principal avenida de Montevidéu lentamente, e uma performatividade que chamo “do silêncio”, porque se coloca como uma analogia da atitude da política nacional frente à busca da verdade e da justiça, tal como o coloca Diana Taylor (acadêmica estadunidense) em uma análise sore as Avós da Praça de Maio, que se ajusta muito bem para analisar o que acontece no Uruguai: “Através de seu corpo, conseguem tornar visível a ausência/presença de todos aqueles que tinham desaparecido sem deixar rastro, sem deixar um corpo. Converteram seus corpos em arquivos ‘vivos’, assim preservado e exibindo as imagens que tinham sido o alvo da supressão militar” (2000, p. 36).

São os corpos em cena os encarregados de reclamar enfaticamente e em silêncio os corpos que ainda não foram encontrados de centenas de uruguaios/as desaparecidos/as. Sobre os corpos de agora pesa o tempo; aos mais de 40 anos de silêncio se somam novos corpos nascidos nos anos em que a marcha começou a ser realizada, para juntos/as caminharem em silêncio e exigirem justiça. Aqui, na ação, fundem-se as memórias de diferentes gerações para transitar juntas o silêncio performativo que se vive nesta marcha e que é reflexo de um vazio político em relação a este assunto e ao não esclarecimento dos crimes cometidos sob o regime ditatorial.

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E floresceram margaridas

Neste 20 de maio, todos os corpos, que não puderam estar fisicamente no espaço público, fizeram-se presentes através de uma ação coletiva. Este ano tão particular em que nos sentimos ameaçados por algo pequeno, um vírus microscópico, o silêncio, esse grito apertado de indignação e tristeza com o qual carregamos como sociedade, tornou-se imagem. Ou centenas de imagens. Floresceram margaridas de papel por todos os lados, em todos os bairros se exibiram fotos dos/das desaparecidos/as, cartazes que exigem verdade e justiça, e a palavra “presente” pousou em milhares de janelas. Em varandas, janelas, canteiros e praças apareceram múltiplas intervenções artísticas.

Na fronteira entre o público e o privado, concebeu-se esta performance de corpos também ausentes, como aqueles, como os/as de nossos/as desaparecidos/as. Este ano, o compromisso com a busca dos/das desaparecidos/as, com as exigências de verdade e justiça pelos crimes de lesa humanidade, não se resolveu com ir a uma marcha; este ano foi necessário colocar mais que o corpo, a alma: criar, planejar, construir a maneira de ser e estar presente. Nesta multiplicidade de formas de tornar-nos visíveis, esteve a magia.

Os edifícios se tornaram cartazes, foram projetadas imagens em monumentos emblemáticos, foram colocadas em portas e janelas, assim como na Praça Liberdade os retratos que antes levavam as mães e familiares. Foram pintadas pegadas dos passos que não estariam na principal avenida e assim, a partir de uma nova maneira de estar presentes, o estivemos. As vozes não apenas se alçaram nas redes sociais.

Foi construído um tecido de imagens, de cartazes, de margaridas, de intervenções em paradas, muros, casas. A marcha sem marcha cobrou uma magnitude e uma presença como nunca antes se tinha vivido na cidade. Os corpos ausentes se fizeram presentes através de objetos e pudemos reconhecer os vizinhos/as que sentem esta mesma indignação, com quem compartilhamos a necessidade de que a verdade venha à tona e possamos, de uma vez por todas, encontrar os/as desaparecidos/as, saber o que aconteceu com cada um/uma deles/delas, encontrar todas as crianças.

É importante, este ano, resgatar a presença de imagens do Silêncio, projeto que fotografou pessoas de diferentes âmbitos da cultura e da sociedade, abraçadas a um cartaz com a foto e o nome de algum dos/das desaparecidos/as, embora o projeto tenha sido pensado para ser realizado com antecedência à marcha (e durante). No contexto da pandemia, as fotografias gigantes que foram feitas com as fotos cobraram ainda maior magnitude, assim como os cartazes nos muros e as múltiplas intervenções que foram realizadas com elas foi outra grande contribuição para a performance virtual que se realizou este ano.

O silêncio é o que tem caracterizado o regresso à democracia: tapa-se, esconde-se, cala-se e se gera uma sensação de incompletude para muitos uruguaios/as que vivem, desde então, com uma ferida aberta. As iniciativas cidadãs de participação e ação coletiva colocam na cena política um espaço de transferência intergeracional fundamental para a construção de uma cidadania com memória.

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