Com Maite Rodríguez Blandón, ativista guatemalteca
“Não podemos nos permitir perder lideranças”
Como se vinculam a situação das mulheres, a administração dos recursos naturais e os conflitos relativos ao meio ambiente e à pandemia? Como se reconstrói depois de uma crise de dimensões planetárias? Durante a entrevista, Maite Rodríguez vai costurando, um a um, esses conceitos.
Bahía Flores
Maite Rodríguez Blandón é ativista, Coordenadora de Programas da Fundação Guatemala, fundada em 1987. Lidera a Rede de Mulheres e Paz na América Central, que agrupa organizações de mulheres da Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Costa Rica e Honduras; integra a Rede Mulher e Habitat da América Latina e do Caribe, da qual é Coordenadora Regional e faz parte da Comissão Huairou. Em sua extensa trajetória, tem-se dedicado ao trabalho com movimentos de mulheres de base, acompanhando suas lutas pelos direitos da terra.
—Como você passou a se interessar pelas lutas das mulheres?
—Sou a única filha mulher, tenho três irmãos homens e tive a sorte de ter um pai que mal pôde me ensinar a nadar. Com esses pequenos ensinamentos, me empoderou e alentou minha independência. Minha mãe não duvidou em me emprestar o carro para percorrer a cidade. Nessa época, não se diziam “feministas”, mas eram, me impulsionavam a fazer muitas coisas, a poder conseguir os quatro “A”: autoestima, autoridade, autonomia e automóvel. Na universidade, me meti no movimento de esquerda, militei em um partido dentro do qual abrimos espaços para as mulheres; novamente, ainda não falávamos de “área de gênero” ou “feminismo” explicitamente, mas foi nesses espaços onde comecei a trabalhar pelos direitos das mulheres. E portanto, claro, minha inspiração e minha mentora, sem dúvida, foi minha tia, Raquel Blandón, ativista e referência política. Raquel, que foi primeira-dama de meu país e recentemente foi candidata à vice-presidenta, é uma das pioneiras na Guatemala em abordar os direitos das mulheres. Ela participou na Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, ocorrida no México em 1975, e também representou a Guatemala na Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher. Pude acompanhá-la nessa ocasião e foi uma experiência muito importante para mim.
—Depois você focou nos direitos das mulheres, no território e nas violências. Como foi esse caminho?
—Desde muito jovem, me envolvi bastante no tema porque me sentia muito impactada diante das injustiças, diante da exclusão das mulheres e, sobretudo, diante da discriminação que havia em meu país para com as mulheres indígenas. Quando visitava o interior da Guatemala, ainda muito pequena, lembro-me de que via as mulheres atravessando as carregando a lenha com suas crianças, descalças, levando a água sobre suas cabeças e pensava que não era possível que vivessem nessas condições, que as meninas não pudessem estudar; parecia-me tão injusto. Ao voltar desse encontro das Nações Unidas, juntamente com Raquel, e, ao retornar a democracia na Guatemala, começamos a criar redes centro-americanas de mulheres. Integramos a União Internacional para a Conservação da Natureza e ali pudemos criar comitês de gênero e desenvolvimento sustentável. Foi um ponto de ruptura porque aí começamos a trabalhar os temas de gênero, explicitamente. Fizemos uma oficina na Nicarágua sobre desenvolvimento sustentável com companheiras de diferentes países e aí conhecemos Maria Marcela Lagarde y de los Ríos que coordenou uma oficina. Nos mobilizou bastante, nos ajudou a dar corpo a nossos olhares sobre o tema. Lembro que, terminada a guerra em El Salvador, em um ato de reivindicação e rebeldia, fizemos com ela uma oficina no que restava das instalações da Universidad del Salvador; foi um ato belíssimo para recuperar esse espaço, completamente destruído, para as irmãs salvadorenhas. E essas experiências foram se multiplicando, crescendo. De Volta à Guatemala, fizemos a primeira Oficina “Cassandra” de Antropologia Feminista e essa oficina foi seguida de mais 30, coordenadas por Marcela. Mais adiante, criamos a Licenciatura em Estudos das Mulheres, Gênero, Feminismos e Descolonização. Também naqueles anos, no final da década de 80, foram criados os comitês de mulheres rurais; nessa época, surge a Fundação Arias para a Paz e o Progresso Humano da Costa Rica. Me convocaram e tive a oportunidade de trabalhar para capacitar a primeira coordenadora de mulheres indígenas, muito antes dos acordos de paz. A Coordenadora Nacional pelo Direito à Terra e à Propriedade estava formada por nove organizações de mulheres indígenas e começamos a trabalhar com elas o acesso à terra, à propriedade. E, rapidamente, pudemos incidir no Ministério da Agricultura, que estranhamente ou não, foi um dos primeiros espaços que buscou tecer alianças com as mulheres. Foi e ainda hoje continua sendo um tema para trabalhar, foi um processo de muito tempo, de muitas aprendizagens, de muita construção coletiva.
—Como se integra a perspectiva de gênero nas lutas pela mudança climática e os conflitos ambientais?
—Acredito que há um vínculo bem forte entre a perspectiva de gênero, as mulheres e a mudança climática. Nesses anos, a agenda foi mudando. Antes, pensávamos o meio ambiente, hoje nos encontramos pensando sobre os impactos da mudança climática. As mulheres, o acesso à terra e o impacto da mudança climática em seus habitats estão vinculados. Basta apenas se perguntar para que as mulheres querem a terra. A querem para dar segurança alimentar, a querem para ter moradia, para ter sua partezinha de território, a querem para viver. Começamos a ver que as mais afetadas pela defesa da terra são as mulheres. Os homens têm mais possibilidades de se movimentar e transitar, migram tanto dentro de seus países quanto para fora. As mulheres, pelo contrário, são as que ficam fazendo frente aos embates climáticos, são as que ficam vendo o que vão dar de comer para seus filhos e filhas. São as mulheres e as meninas as que carregam a água, percorrem longas distâncias com muita frequência e isso cria múltiplos problemas em seu desenvolvimento, em sua saúde. Os problemas que enfrentamos devido à mudança climática têm um impacto diferencial nas mulheres que não podemos negar.
—Como se vincula ao ecofeminismo esta linha de trabalho?
—As correntes ecofeministas, ao menos há um tempo, propunham que o centro era a mãe terra, não as mulheres. Aí está a grande armadilha de algumas correntes ecofeministas que naturalizam a maternidade e o papel de cuidadoras das mulheres em todo sentido. Temos que atender essa diferença, a partir do feminismo estamos todo o tempo pensando em colocar as mulheres no centro.
—Nos últimos tempos, em países como Nicarágua, Costa Rica, Colômbia, se conhecem mais casos de ativistas que terminam assassinadas em conflitos por territórios e recursos naturais, lutas que muitas vezes as mulheres encabeçam. Como promovemos a liderança das mulheres sem expô-las ainda mais a violências?
—Ninguém está pensando em quem cuida das defensoras desses direitos ambientais, nem em seus companheiros de luta. Nas mobilizações camponesas por territórios, na hora de lutar, as mulheres sempre vão como bucha de canhão e os homens, enquanto isso, vão para as mesas de diálogo. Há casos paradigmáticos: Berta Cárceres era uma ativista realmente muito importante em Honduras e a deixaram muito sozinha, muito exposta; Marielle Franco, no Brasil. Falta muita solidariedade no interior dos movimentos de luta para com as mulheres, com as líderes. Há muito que revisar. Eu penso que devemos pensar em estratégias que envolvam não apenas as ativistas, mas também aos governos locais e aos meios de comunicação para que possam acompanhar os processos de luta. A solução não é se guardar, mas sim assegura àqueles que lutam o mínimo de garantias, uma rede de sustentação e acompanhamento com atores-chave: deputados, procuradores, legisladores, organismos internacionais. Não podemos nos permitir perder lideranças. Devemos estar pensando já, redesenhando e redefinindo esses processos de luta. Não nos expor tanto porque não somos tantas. Com os crimes de Berta, Marielle e tantas outras companheiras, temos que aprender, neste mundo tão misógino e tão feminicida, que não podemos colocar as líderes na mira. E, antes de tudo, entender que esses são crimes misóginos e, por isso, continuam impunes, porque os sistemas de justiça estão corrompidos, porém devemos continuar na luta e buscar alternativas.
—Que estratégias se propõem a partir dos feminismos para ter lugar e voz em espaços de decisão como os governos locais?
—É fundamental convocar as autoridades locais, o município e atuar com as nossas referências dentro desses espaços. Sempre haverá um escritório municipal da mulher, um gabinete municipal da mulher, uma secretaria municipal da mulher. Temos que fortalecer a que está ali, nos aproximarmos com nosso trabalho, criar aliança com ela. Temos que ser entronas, como diz uma de minhas professoras, Rosa Cobo. Ela diz, e eu concordo, que não vão nos convidar para que nos sentemos à mesa para negociar. Nós temos que entrar, temos que ver onde há uma fissura e nela nos metermos. Não é que haja uma abertura magnífica para os temas de gênero, porém temos que fazê-lo do nosso modo, localizando onde estão estas fissuras. Nessa mesma linha, eu penso que o que temos que fazer é entrar nos governos locais. Inclusive seria melhor entrar por meio das eleições, mas sabemos que, para ser candidatas e entrar no jogo dos partidos políticos, tem que falar de dinheiro. O que nos leva a que também tenhamos que trabalhar para mudar a lei de partidos políticos, de participação política, porque se se mantém como está, não vamos ter acesso para fazer parte das indicações para eleições populares. A lei eleitoral deve mudar porque agora não há alternância. Aqui na Guatemala, ter acesso a um cargo dos mais baixos na lista de deputados implica custos altíssimos que é impossível enfrentar. Então, acredito que temos que entrar nas estruturas que nos permite o processo municipal, o processo descentralizado de cada país. Se estás envolvida nos conselhos comunitários de desenvolvimento do teu distrito, do teu município, do teu bairro, esse é, pois, o primeiro passo. E depois buscar essas aliadas que estão trabalhando pelos interesses das mulheres no interior da própria estrutura municipal. Um exemplo muito concreto de como estas estratégias funcionam é o caso de um município em Livingston (que foi onde começou o Programa de Cidades Seguras) onde conseguiram que o Plano Operacional Anual do escritório municipal desse município fosse a reconstrução e revitalização de toda a parede do cemitério local. Por que era importante essa obra? Porque as mulheres ali sofriam abusos de todo tipo, dado que o cemitério não tinha muros e nem. Então, durante a noite, ninguém poderia passar; era um lugar muito perigoso. Dessa forma, graças ao trabalho com a direção de mulheres desse munícipio, realizou-se a reconstrução da área perimetral do cemitério. Penso que temos muitas metodologias em prática e tem que continuar aprofundando-as.
—Em um fórum virtual, semanas atrás, você disse que “o covid-19 é como furacão silencioso, que rompe com estruturas que tínhamos criado e colocado em funcionamento para as mulheres” Qual é a chave para avançar na reconstrução depois que esse furacão passar?
—Tivemos que ver como esta pandemia, além das milhares de vidas perdidas, deixa em seu rastro pobreza, tristeza, desolação e muitos meios de vida em pedaços. Hoje, por exemplo, fui a um banco que está localizado em um pequeno shopping: de todas as lojas, umas dez já não existem, quebraram. E isso é apenas um caso. Outro exemplo: aqui na Guatemala – já estamos por completar os três meses de quarentena – a cesta básica, no último mês, subiu 40%, mas as famílias dizem que inclusive o aumento poderia ser de 70%. É claro que vamos necessitar plenamente de uma reativação dos meios de vida e impulsionar iniciativas que as mulheres estão tendo. Diante disso, uma das chaves para a recuperação pós-pandemia poderia ser que as mulheres, as famílias produzissem o que vão consumir, recuperar a ideia de “esta comunidade come o que produz”. O empoderamento econômico não é apenas que ganhes dinheiro, é também que economizes dinheiro ao deixar de pagar preços muito altos por alimentos que tu podes cultivar, que tu podes produzir. A autossuficiência alimentar é uma das primeiras áreas: o investimento em bancos de sementes, em processos de hortas urbanas, individuais e coletivas, de aproveitamento de solos. Também há que buscar financiamento para investir em meios de vida, voltar a processos artesanais. Por outro lado, voltar para a solidariedade da troca, ao menos em certas áreas; isso vem da época das civilizações Maias, que já usavam este tipo de intercâmbio de bens. As pessoas não vão ter dinheiro para comprar coisas; então, estas práticas vão ser importantes, porque será fundamental restringir a compra de bens que não são necessários. Logo, devemos pensar em programas estatais e ver como aceitamos essas iniciativas. Penso, por exemplo, em programas do Ministério da Agricultura que possam trabalhar com as mulheres que vivem perto de mercados para impulsionar os mercados coletivos e comunitários. Deveremos usar os espaços públicos a partir de uma apropriação multiuso. A partir das organizações, pensar em fazer eventos, não mais em hotéis, mas em espaços comunitários para ajudar a reativação econômica. Em resumo: é um momento de voltar para tudo que é local, consumir tudo que é local, comprar tudo que é produzido pela vizinha, voltar a usar o que já temos em vez de gastar dinheiro no último modelo. Estas ações vão nos permitir substituir custos e fazer circular o dinheiro, é a única maneira. E, por último, trabalhar em processos coletivos de cura, voltar às cosmogonias, às espiritualidades, porque a humanidade vai ficar arrasada e temos que pensar em nos ampararmos entre nós.
Retrato personal
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