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Resistir à violência e à impunidade

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Eu sou minha

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Sandra Ferrini é a sobrevivente do tráfico de pessoas com fins de exploração sexual mais visível do Uruguai. Através de vídeo-chamada, conversamos com ela sobre o modo como se enfrenta essa problemática em nosso país e sobre sua história, seu ativismo, como impactou a pandemia em sua vida.

 

Florencia Pagola

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“Uso lentes de contato cinzas porque gostava da cor dos olhos do meu avô. Meu cabelo é preto, liso e longo até a cintura. Em minha pele, tenho a tatuagem de uma mulher com um revólver Colt 45 e uma rosa (feita pela primeira rede de tráfico que me levou), e as cicatrizes de sete punhaladas de um serial killer da Itália. Me visto de preto e uso roupa clássica. Não misturo mais de três cores, já que usei todas as lantejoulas e as cores que não queria usar”. (...) “Passei por vários nomes, de guerra, de passaporte. Não eram os que eu queria, eram dados por outras pessoas. Sandra Ferrini sou, minha escolha”.

 

O confinamento social pela Covid-19 de Sandra foi com seu neto, em sua casa. Nos momentos de confinamento, o que mais lhe doeu foi não poder ajudar as mulheres que, igualmente a ela, são sobreviventes do tráfico com fins de exploração sexual. Logo, a outra: a dor própria.

 

“Não podes ajudar as demais porque não podes sair e não as tenho aqui no bairro porque, se não posso cuidar delas, é um perigo. Algumas se foram e com outras mantenho contato por Whatsapp. Estou revivendo a dor delas na minha. Eu pensava que era invencível, mas este é um confinamento que está me matando. Me angustia tanto, o comparo a quando estava na Espanha e não podia ligar para o meu filho. Essa sensação de impotência faz com que te jogues contra as paredes”.

 

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Houve um dia, antes de completar 9 anos, que a mãe de Sandra a levou à casa de um vizinho. Ele a violentou enquanto sua mãe esperava na sala. Depois, outros a violentaram em troca de dinheiro. “Apesar de que já estava nesta situação (exploração sexual), aos nove anos, festejaram meu aniversário, tudo era dissimulado. Minha avó, que tinha mal de Parkinson, pôde ir, fizeram de tudo para levá-la. Foi maravilhoso”.

 

Foi criada em Cerrito de la Victoria e em La Teja. A situação econômica de sua família era boa, nessa época seu pai tinha até três trabalhos. “Que eu soubesse, meu pai não sabia o que acontecia comigo. Eu era ameaçada: se eu falasse, matariam o meu pai. Mas ele sempre me dizia que me casasse com uma luta. Talvez ele soubesse e não queria me dizer, ou suspeitasse que havia algo estranho”.

 

Logo, sua mãe lhe apresentou um “namorado” chamado Dante, com que a casaram. Dante passou a ser seu cafetão, a explorá-la sexualmente para seu benefício econômico no Uruguai e, mais tarde, no exterior. “Eu tenho que dizer algo, porque alguém vai fazer o comentário: ‘ela foi sabendo...’; sim, eu fui em um momento que as pessoas sabiam que eu já estava na rua, mas fui com a promessa de que aos seis meses voltaria e deixaria de me prostituir. E quando cheguei lá, entrei no túnel do horror porque era tudo muito diferente”.

 

Como aconteceu com Sandra, o lar continua sendo o principal lugar onde se faz o primeiro contato com uma vítima de tráfico de pessoas com fins de exploração sexual. Pode ser um familiar, esposo, ex-esposo ou um conhecido que, em sua maioria, usa a promessa como forma de persuasão. Assim, confirma uma investigação sobre o tráfico de pessoas no Uruguai “Donos de pessoas, pessoas com donos” da Associação Civil El Paso (2020), documento ao qual recorremos ao longo deste artigo (de agora em diante Investigação).

Mediante a promessa, as razões para realizar estas viagens têm a ver com a situação econômica das vítimas e a pobreza, conflitos familiares ou falta de oportunidades para ter acesso à educação. Não apenas isso: usualmente, as vítimas são induzidas ao endividamento e expostas a represálias e desenraizamento. Assim, elas são separadas de seus vínculos e se perpetua o controle sobre elas.

 

O gênero é a primeira desigualdade que pesa sobre a existência das vítimas. Todas que foram atendidas pelo Serviço de Atenção a Mulheres em situação de tráfico com fins de exploração sexual de Inmujeres e El Paso (de agora em diante o Serviço), são mulheres. À discriminação de gênero seguem pobreza, o desemprego e a exclusão social. A isso se soma a violência que atravessa a vida das mulheres: 62% declarou ter vivido violências de gênero e 26%, violência sexual em sua infância ou adolescência.

 

O caso de Sandra, embora seja paradigmático no Uruguai, não é isolado. Sandra foi embora seguindo a promessa de uma vida melhor para ela e seu filho. E, por ser sua mãe a que a explorou sexualmente e depois seu namorado e cafetão, para ela era o que restava, o que tinha que ser. “Eu teria que ter sido criança, não fui criança nem adolescente”. Sandra não conheceu outra vida que não fosse a da exploração sexual durante 37 anos.

 

Ela dirá mais adiante: “eu dizia que o fazia porque queria, porque os cafetões te convencem ao ponto de pensar que fazes porque queres”.

 

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Sandra foi explorada sexualmente no Uruguai, Argentina, Paraguai, Brasil, Espanha, Turquia, Itália, Holanda, Iugoslávia, Portugal, Áustria, Suíça, “e outros países que já não lembro”.

 

Como Sandra, 3% das sobreviventes que passaram pelo Serviço foram exploradas dentro e fora do país do qual foram recrutadas. Mas 83% foram exploradas em um país diferente, o que implicou para elas um desenraizamento maior e um distanciamento de seus vínculos. Isso coincide com um crescimento exponencial de casos de estrangeiras exploradas sexualmente no Uruguai a partir de 2014. Do total de pessoas que passaram pelo Serviço, 75% eram estrangeiras e 25% nacionais. Com o passar dos anos, o Uruguai deixou de ser apenas um país de origem e trânsito de tráfico de pessoas (mulheres), e também passou a ser um de seus destinos.

 

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Se Sandra tivesse que definir os cafetões, talvez escolheria esta frase: “Todos os cafetões têm um mascote ao qual tratam melhor do que tratam suas mulheres para te fazer acreditar que não vales nada” E sobre quem pagava para fazer sexo com ela esclarece: “São perpetradores; não gosto de dizer a palavra cliente porque não somos mercadorias; tem que erradicar essa palavra”.

 

As formas de violência psicológica, verbal, física e sexual (segundo a Investigação, os mecanismos predominantemente utilizados para o controle das vítimas) que os cafetões usavam persistiam de tal forma que Sandra vivia com raiva e dor. Por exemplo, na Espanha: “Descíamos para o salão das 4 da tarde até as 4 da manhã. Tínhamos meia hora par comer uma só refeição no dia. Não podias telefonar nem comprar umas meias. O único contato era com os perpetradores, tinhas sete minutos para estar com eles. E fazíamos três turnos com até 30 homens cada um”.

 

Ou na Itália, quando uma companheira aconselhou: “(O cafetão) me disse: ‘domingo vais trabalhar, vamos conhecer a casa de Romero e Julieta porque quero te ver na varanda’. Comprou para mim um conjunto de roupa lindo. Primeiro fomos à Arena de Verona, ou seja, estava conhecendo algo diferente da esquina, do taxi e do confinamento. Quando entramos, me disse: Assim que eu vou te matar? E a outra garota: ‘Olhe, senhora, o que acontece com as que se comportam mal!’. Começou a me bater, ele era boxeador e fazia arte marcial. Absolutamente ninguém interveio, todos sabiam que eram as máfias sul-americanas. Eu estava indignada, mal, ela que tinha me traído e ele que, como um bicho, ia me matar, não dava para isso, ele não tinha direito de me bater.  Chegamos à casa de Romero e Julieta, subi para a varanda, ele fazia como se se declarasse para mim. Era cinismo! Aí entendi tantas coisas, depois evitei falar com minhas companheiras. Sabia que perderia e eu tinha que sobreviver.

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Nisso consistia a existência de Sandra: “Passava em uma esquina, passava entre surras e confinamento”. Como vítima, seu corpo nunca lhe foi próprio nem um meio de desfrute”.

 

“Sabia que era linda porque as pessoas sempre me diziam, mas não gostava de meu corpo porque não era meu. Que não era meu por dois motivos: eu não tinha peitos e me injetaram óleo de avião. Isso provocou uma doença com o tempo e tiveram que fazer uma mastectomia. A antiga gestão nunca fez a reconstrução, nunca houve uma cama para mim. E também porque era o corpo de quem me pagasse. Eu tinha que ficar na posição que eles queriam e fazer o que eles queriam. No filme Tão frágil como um segundo, há uma cena (várias das garotas representam diferentes momentos de minha vida) que eu, quando a vejo, choro. É um homem que diz: “tu és minha P-U-T-A, e isso é uma coisa que eu detestava; eu por dentro dizia: ‘eu sou minha’, mas não podia dizer isso a eles”.

 

De vez em quando, Sandra conseguia momentos de prazer: “Às vezes, quando podia ler, e bom... obviamente falando com meu filho (por telefone)”. Prefere as histórias baseadas em vidas reais e se anima a comentar sobre algumas das obras que leu: “Li 11 minutos (de Paulo Coelho), embora não tenha gostado do final porque não existe prostitua apaixonada, mas sim gostei de como se identifica a personagem com uma verdadeira pessoa que está parada em uma esquina. Também lia muito Stephen King; não me assustava, como uma companheira a quem eu aconselhei que não lesse, e ela me disse: ‘me assustam as coisas de horror’. E eu lhe dizia: ‘o horror é este’”.

 

Talvez por isso, Sandra dormia com os olhos tampados (costume ao qual se habitou) e sempre sonhava com o verde. “Nos momentos de confinamento, sonhava com o verde, o verde, o verde. Não sabia por que. Quando pude ser livre e vim embora para o Uruguai, vi tanto verde, que eu me dei conta de que o que pensava era em voltar para o meu país, em ajudar as garotas de meu país”.

 

Para Sandra, as forças de sobrevivência a 37 anos de exploração sexual se encontram em um telefonema que te diz te amo, preciso de ti. “Meu filho me dizia ‘vovó está fazendo assim com a mão’, que queria dizer que ia bater nele, ‘vovó não me deixa falar’. Aí, me dei conta de que estávamos os dois em uma mesma situação. Eu tinha que sair para que meu filho pudesse falar e eu pudesse falar. Ele estava vivendo o mesmo que eu”.

 

Das sobreviventes do tráfico que passaram pelo Serviço (e das que se conta com informação), 83% têm, pelo menos, um filho.

 

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“Eu amava minha solidão controlada. Me convidavam para sair, se eu queria sair e se não queria. Ia a lugares aos quais os cafetões não iam; ia para longe, fora da cidade, a lugares de pessoas decentes. Ia a um local onde todos eram artistas e tinha uma relação enormemente feliz com eles. Nunca me trataram como se eu não soubesse; pelo contrário, tratavam de me ensinar. Foram pessoas que jamais olharam meu corpo, olhavam minha pessoa, meu modo de ser. Jamais tive uma insinuação por parte de nenhum deles, nem abuso sexual, nem declaração. Então, me sentia muto bem, inclusive muito querida pelas mulheres que frequentavam esse lugar”.

 

Segundo a Investigação, 54% das sobreviventes que passaram pelo Serviço “viveram a exploração com aparente liberdade de movimento”, ou seja, que os mecanismos de controle que predominavam eram os de “abuso de poder”. De todo modo, Sandra faz uma diferença entre ser explorada no Uruguai e no estrangeiro: “Quando eu estava o Uruguai e era explorada sexualmente, tinha uma liberdade, entre aspas, porque podia ir comer com minhas companheiras de esquina, podia dormir na casa delas. Não era tanta a vigilância que tínhamos porque não te oprimem aqui, te oprimem quando te tiram do país. É aí quando mundo termina para ti e continua terminando todos os dias”.

 

Porém sempre que pôde, Sandra escapou do controle dos cafetões: “Escapei inúmeras vezes. Escapei de lugares inimagináveis, como na Iugoslávia em tempos de guerra, mas me encontraram. Nesse sentido, eu era um pouco boba, sempre deixava me pegar. É que não existe o esconderijo perfeito; além disso, eu enviava dinheiro para minha mãe e ela dizia de onde eu estava enviando”.

 

Ao lhe perguntar o que pensava que haveria para ela quando pudesse sair do tráfico, responde: “Eu dizia que, no dia em que eu pudesse sair, ia me ocupar dos direitos das mulheres. Isso e meu filho, depois do filho que me sequestraram (Sandra teve vários filhos que lhe foram tirados ou mortos a golpes ainda em sua barriga). É feio, mas a luta é melhor que nada”. E ao lhe perguntar se agora, depois de tanto tempo, finalmente conseguiu, responde: “Acho que cheguei ao que eu queria: ter muita gente sentindo ao falar deste tema. Estive em um congresso com 8.800 pessoas que foram me escutar. Cheguei a ser presidenta honorária da RATT (Rede Alto ao Tráfico e ao Tráfico de pessoas) internacional, com a qual somos membros da OEA (Organização dos Estados Americanos), e ter minha ONG (Fundação Sandra Ferrini). Não consegui ter um lar (para as sobreviventes de exploração sexual), porque o governo anterior não me ajudou em nada. Quiseram me asfixiar, é muito diferente falar com as sobreviventes do que ler um livro; para nós, o livro vem escrito em nossa pele e em nosso sangue. Acreditam que são melhores porque têm estudos, mas eu acho que a voz das sobreviventes tem que ser algo muito importante”.

 

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Sandra se libertou dos cafetões graças a um acidente de trânsito que a deixou paralítica: “A máquina já não servia, para eles éramos máquinas”. Viveu vários anos na Itália realizando ativismo até que regressou ao Uruguai, onde colocou um nome aos 37 anos de exploração sexual: tinha sido vítima de tráfico de pessoas.

 

“Quando fui fazer a carteira de assistência sanitária, me mandaram ao Mides (Ministério de Desenvolvimento Social), ao gabinete de tráfico de pessoas e narcotráfico; era um plano piloto. Fui a segunda (sobrevivente de tráfico de pessoas a ser atendida). Quando entrei, vi duas garotas jovenzinhas, as coordenadoras; tenho que dizer que eu era um pouco soberba porque tinha conseguido sair, tinha conseguido estar em ambientes quando não estava confinada, sabia que tinha capacidades e elas quiseram demonstrar que eu não as tinha. Elas me falavam que eu não era vítima do tráfico de pessoas. Entendi que eu não escolhi isso. Aí me dei conta mais da minha natureza. Presta atenção que eu tinha 9 anos, era minha vida, não conhecida outra realidade. Mas que o tenha naturalizado não significa que agora o veja como uma coisa normal”.

 

Sandra acredita que, para se reconstruir a si mesma e sua identidade, foi muito importante participar da RATT internacional, de onde pôde chegar a mais pessoas com seu ativismo. “Quando cheguei ao Uruguai, estava acostumada a não poder olhar as pessoas na cara, a tratar por você todo mundo. Sofria uma fobia social tremenda e começar a trabalhar este assunto me ajudou muitíssimo”.

 

Além de ajudar a outras sobreviventes, seu projeto é o de conscientizar a população sobre o tráfico de pessoas e a violência. “Eu batia em mim mesma porque não tinha chegado à quota. Era como um filme, me jogada contra a cômoda, caia, me levantava, batia a cabeça contra a parede... em um momento vejo que os vizinhos da frente estavam vendo tudo porque a persiana estava aberta. Olho e te garanto que forçamos o olhar com a senhora que, quando se deu conta, baixou a persiana. O medo das outras pessoas também dói”.

 

Aqueles que exploraram Sandra ao longo de 37 anos ainda continuam explorando outras meninas. “Eu sei que um dos meus cafetões foi denunciado uma vez e ficou livre por falta de provas. Eu o denunciei faz um ano e meio, tenho as provas, mas ninguém me interrogou. Não são pessoas com poder, são pessoas que se cruzam com pessoas que as ajudam, que alisam o seu caminho. O denunciei poque o vi com duas meninas, nunca mais voltei a ver essas meninas. Eu o vi por cinco domingos seguidos em uma pizzaria próxima do meu bairro. Ele não me via, mas eu sim. Quando fui denunciar, dizer que seu nome era Carlito Pérez, me disseram: ‘Não, isso não vamos investigar porque é um nome muito comum. E você, continua exercendo? Me escutem, eu lhes disse: ‘estou falando que eu sou uma sobrevivente do tráfico de pessoas, eu não exerci, estava obrigada em situação de prostituição’. ‘Obrigada, isso não existe, senhora, porque o país está muito mal. Tem que viver e deixar viver’”.

 

O caso de exploração sexual de Sandra ainda segue impune.

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