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As cruéis facetas do derramamento de petróleo na vida das pescadoras
artesanais em Pernambuco

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Fran Ribeiro

“As pescadoras são as mais atingidas e continuam ainda naquela água com óleo. Lá mesmo [Sirinhaém] tem pescadora que continua ir pegar o marisco e quando chega, chega toda melada de óleo. Só que elas não estão indo pegar pra vender, estão indo pegar pra comer. O governo também tem que pensar na saúde. Porque a gente tá vivendo situação de fome, tá colocando nossa saúde em risco e nada tá se fazendo. Nenhum olhar para a pesca artesanal nem do governo federal, nem estadual. Se o óleo atingiu o turismo, que a mídia só coloca o turismo, o turismo… mas a pesca foi a mais impactada, o pescador é o mais impactado. Por isso que a gente faz aqui esse apelo para uma audiência pública sobre a pesca artesanal pra gente tratar dessas problemáticas na base” [1].


Esse foi o apelo feito por Arlene Maria da Costa, pescadora e presidente da Colônia Z6 de Barra de Sirinhaém, no litoral sul de Pernambuco, durante a 12ª Reunião Ordinária da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE). Arlene e tantas outras milhares de mulheres, homens e crianças estão em situação de fome, de insegurança-alimentar e de exposição aos efeitos nocivos das substâncias que vieram junto com o petróleo cru derramado no mar e que mudou drasticamente a cultura pesqueira tradicional no litoral do nordeste do Brasil, um crime socioambiental que está prestes a completar três meses sem nenhum tipo de resolução por parte dos poderes públicos estadual e federal.


A fala de Arlene questiona os motivos da invisibilização dos impactos na vida das pescadoras e pescadores, uma vez que até o momento, tanto a grande mídia quanto os poderes públicos só têm tratado da questão a partir dos impactos causados para o turismo. A pescadora integrava uma comissão formada por pescadoras e pescadores ligados à Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e com apoio jurídico do Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), que foram até a CDH exigir a realização de uma audiência pública sobre a pesca artesanal na Casa, com o objetivo de denunciar a situação de emergência que as comunidades pesqueiras e ribeirinhas têm enfrentado.


A audiência é uma forma de participação popular na instância pública. A exigência do movimento para a sua realização se dá pela possibilidade de colocar em um mesmo espaço pescadoras e pescadores atingidos junto às autoridades competentes, para que se entenda, inclusive, quais os reais motivos que fazem o governo do estado de Pernambuco adiar a decretação do estado de calamidade pública. Com o decreto seria possível analisar os diferentes efeitos associados ao crime e que estão impactando as populações nos territórios pesqueiros.

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Racismo ambiental, inoperância do poder público e desrespeito com a pesca artesanal

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Na reunião com toda a burocracia prevista, tanto Arlene quanto Ornela Fortes, assessora jurídica da CPP, enfatizaram a invisibilização dos impactos do crime socioambiental na vida das trabalhadoras e trabalhadores da pesca artesanal e que em sua maioria, é composta por corpos negros que estão em situação de fome, de risco real de saúde, seja pela exposição ao alimento possivelmente contaminado, seja pelo contato direto com o petróleo e da insegurança em relação ao trabalho. Após a escuta da sociedade, de um certo impasse e menosprezo com a situação por parte de um dos deputados que compunham a mesa da CDH, o movimento das pescadoras e pescadores saíram da ALEPE com uma reunião marcada com o secretário de meio ambiente de Pernambuco e com a audiência pública agendada, mas sem nenhuma certeza de uma solução concreta por parte do Executivo ou do Legislativo.


No mesmo dia a comissão das pescadoras e pescadores representantes das comunidades do norte e sul de Pernambuco foram se encontrar com o secretário de meio ambiente, José Bertotti, em uma reunião com pouco respeito às demandas colocadas pelas pescadoras e também poucas propostas de solução. De acordo com as
representantes do movimento, a posição do Governo de Pernambuco é de que a situação está remediada e joga a culpabilização para o Governo Federal. Sem soluções, o movimento segue desamparado pelo poder público.


O crime ambiental decorrente do vazamento de óleo no litoral do Nordeste atingiu uma extensão de 2.100 km, 350 praias em 110 cidades litorâneas e mudou de forma drástica a vida de mais de 150 mil trabalhadoras e trabalhadores que vivem em pequenas comunidades, que tem uma população majoritariamente negra que sobrevive da pesca artesanal. População essa que há mais de 70 dias lida com a omissão dos governos,
com a desinformação sobre os reais danos que o crime causou ao ecossistema e se arrisca para sobreviver e tentar salvar um território que está para além da visão exploratória do mercado.


A exigência da realização de uma audiência pública é justamente para contrapor o discurso que está sendo disseminado pelos governos e pela grande mídia em favor da proteção do meio ambiente para favorecer o turismo. A audiência quer evidenciar que quem realmente está sendo impactado nesse crime são corpos e territórios que, sistematicamente e historicamente, são explorados pela lógica do capital. Uma população que está sendo jogada à condição de miséria e pobreza enquanto a letargia do Governo Federal e Estadual não dá respostas sobre quem são os culpados pelo crime.

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Por ser o nordeste do Brasil o berço da insurgência e da resistência popular contra a lógica dominante, a mitigação por ações operativas que possam amenizar os impactos sócio-ambientais revelam que o racismo no país está longe de acabar. De acordo com a avaliação feita por Mércia Alves, militante em defesa dos Direitos Humanos e educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, a inoperância dos poderes
públicos revela a expressão do racismo ambiental e estrutural, traços que regem a política brasileira até os dias atuais.


“A omissão e a lentidão do governo federal é a expressão deste racismo estrutural que se desenha sob os territórios pesqueiros de forma perversa. Ao não responder às demandas e atentar-se às denúncias de pescadoras e pescadores, só acentua ainda mais as precárias condições de vida desta população negra que está no litoral e à deriva pela desresponsabilização do Estado brasileiro. Esse quadro só acentua o caráter racista e patriarcal deste Estado e para nós é preciso denunciar as violações e o racismo ambiental. Para nós vidas negras importam!”, denunciou Mércia.


Assim que as grandes manchas de petróleo cru tomaram as praias, foram as próprias comunidades que iniciaram o trabalho de gestão da crise. Sem nenhum tipo de material de segurança ou apoio de órgãos especializados, mulheres, homens e crianças tiraram no braço o óleo que estava manchando seus territórios, uma ação que revela como para essas populações a relação com o território é sagrado e que a pesca artesanal, mais que um meio de sobrevivência, é uma identidade e uma forma de existir na vida. E essa existência que contradiz a lógica exploratória está sendo mais uma vez atacada. Porque quem ganha com o fim da pesca artesanal no país é a pesca industrial e os grande empreendimentos hoteleiros e turísticos. Sinais de alerta estão acesos nas comunidades.

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Os impactos cruéis do crime socioambiental na vida das mulheres

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A inoperância do Executivo e do Legislativo tanto no âmbito federal quanto nos estados atingidos é a principal causa da revolta e do adoecimento das mulheres que estão à frente das comunidades atingidas e que assumiram para si todo o processo de organização das pescadoras e pescadores. São impactos diretos no ecossistema e na vida econômica das comunidades, que em sua grande maioria, são formadas por famílias que tem como principal fonte de renda o trabalho feito por pescadoras, marisqueiras e artesãs que tiram da cultura da pesca artesanal o seu sustento.


Tanto em lugares onde o óleo chegou causando devastação em mangues e estuários, como em Sirinhaém, quanto onde as manchas ainda não foram registradas, a exemplo de Carne de Vaca, a situação é a mesma: as pescadoras não estão conseguindo vender o pescado. É o caso de Gerusa Alexandre, pescadora e presidente da Associação de Pescadoras e Pescadores de Carne de Vaca, no município de Goiana, na região norte de Pernambuco. Filha de pais pescadores, Gerusa é mais uma entre tantas mulheres que é responsável pelo sustento da família. Ela faz parte da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP).


“Com essa história do óleo a gente tem sofrido um bocado, porque o óleo não chegou na nossa praia, mas chegou óleo em lugares bem próximos. Mas os impactos sim. A mídia foi a primeira a dizer que não era pras pessoas comerem do nosso pescado, que estavam todos contaminados. Então, ninguém de bom senso seria capaz de comer alguma coisa se dissessem que estava contaminado, eu mesma não comeria. Hoje a situação só faz piorar porque ninguém quer saber de comprar marisco. A área que a gente trabalha tem bastante marisco, peixe, e os pescadores estão sofrendo com tudo isso. O óleo não chegou, mas os impactos chegaram”, contou.


Segundo Rosemere Nery, educadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), os impactos econômicos intensificam a precarização da vida das mulheres. “Avalio que o impacto dessa tragédia ambiental na vida das mulheres pescadoras e marisqueiras só aprofundou a precarização da suas vidas, pois os territórios pesqueiros têm sido invadidos pelos grandes projetos de desenvolvimento que não respeitam os povos tradicionais e muito menos o meio ambiente, a exemplo do Complexo Industrial Portuário de Suape, que retirou famílias do território sem considerar que as mesmas tiravam seu sustento do ambiente que viviam”, denunciou a educadora.


A falta de informações concretas cria também um abismo entre o que é verdade ou não. Desde que as primeiras manchas foram registradas no litoral muita informação foi divulgada, mas pouco se sabe sobre o que de fato é verdadeiro no que tem sido disseminado tanto pelos governos, quanto pela grande mídia. Segundo Ornela Fortes, advogada da CPP, o movimento precisa do apoio de pesquisadores e das universidades para subsidiar a luta da pesca artesanal com informações que possam fortalecer a denúncia em órgãos internacionais, como a que está sendo preparada para o órgão das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, onde o movimento vai denunciar a situação de risco da segurança alimentar nas comunidades.


“A gente tem pautado enquanto CPP, a universidade, no sentido de que esses pesquisadores, esses professores que sempre fizeram pesquisas junto às comunidades pesqueiras de que também está na hora deles apoiarem essa luta com estudos. Porque uma das grandes incógnitas e uma das grandes questões que existe nesse crime ambiental é justamente a falta de resposta. Falta de resposta sobre a salubridade da água, do pescado, a dimensão dos impactos econômicos em cima disso. A gente tem colocado pra universidade, pros técnicos a importância de subsidiar a gente com informações mais precisas”, disse.


Dentro desse contexto, há outro agravante. A solução proposta pelo Governo Federal, de adiantar o seguro-defeso para pescadores nas áreas atingidas não irá contemplar as pescadoras e marisqueiras, por exemplo. Isso porque a legislação protege apenas uma modalidade de pesca: a feita em alto mar para as espécies de lagosta e camarão.

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Nesse sentido, as pescadoras que trabalham em estuários ou as que trabalham no mangue, que estão catando o marisco, não tem o direito garantido, uma vez que o trabalho delas não é reconhecido dentro da legislação brasileira como uma modalidade de pesca. No Brasil, só é reconhecido enquanto pescador quem tem o Registro Geral da Pesca (RGP), uma outra forma de burocratizar e criminalizar a pesca artesanal, uma vez que o próprio governo tem dificultado o acesso de pescadoras e pescadores tradicionais a esse registro, como explica Laurineide Maria de Santana, pescadora e integrante do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).


“Tem uma deficiência do Estado, do Governo Federal que desde 2011, 2012, vem dificultando o acesso dos pescadores a esse registro, seja perdendo documentos, criando burocracias e com isso, os pescadores que na sua cultura já tem uma dificuldade, isso piora na situação. No caso das mulheres, isso se agrava porque as mulheres não serão reconhecidas como pescadoras, como trabalhadoras da pesca tradicional, porque o mundo da pesca era considerado um mundo só dos homens. Numa situação de emergência dessa, se tem, a nível de Estado, um número muito pequeno de pescadores com número do RGP, com a carteirinha de pescador e um número muito maior que não tem esse registro”, explicou a pescadora.


Essa é uma das questões que faz o movimento reivindicar a participação popular no comitê de crise criado pelo governo do Estado de Pernambuco. Garantir a participação de pescadores no comitê amplia a possibilidade de uma solução que de fato contemple as comunidades afetadas a partir das diferenças dos impactos em cada local. Contudo, as poucas visitas que o governo federal e estadual têm feito não ocasionou nenhuma intervenção rápida ou que de fato solucione em curto prazo os problemas que as pescadoras e pescadores têm vivenciado no dia a dia. Vale salientar também que a proposta apresentada do pagamento do seguro-defeso pelo governo federal, anunciado em outubro, além de não abarcar marisqueiras e pescadores de outras espécies de pescado, ainda não foi repassado.


Além dos impactos diretos na economia familiar, na vida e na cultura da pesca artesanal, as pescadoras estão vivendo diariamente com o risco de saúde. Isso porque no ato da pesca, as mulheres precisam se agachar ou sentar na areia ou no mangue, o que deixa exposto a um contato direto com a água contaminada, o aparelho reprodutor.


“A gente pescadora, pra gente ir pra maré, a gente senta na praia pra tirar o marisco. A gente fica acocorada, fica sentada e a gente fica exposta na areia, na lama, entendeu? Então há uma maior possibilidade de pegar uma contaminação, uma doença. Antes disso tudo acontecer a gente tem relato de pescadoras que tem pegado doenças por causa da água, porque a gente sabe que a água não é totalmente limpa. Infelizmente não se tem a consciência do meio ambiente, que é pra preservar aquela área. E com esse óleo só fez piorar a situação”, explica Gerusa Alexandre.

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Além do adoecimento do corpo, as lideranças relatam processos de adoecimento mental das mulheres, sobretudo das que lideram colônias e associações de pescadores, que tem enfrentado o desgaste e exaustão na luta por direitos diante de um contexto de total descaso do poder público. “A sensação é de desamparo e solidão”, relatou Laurineide.

Arlene Maria Da Costa

Qual o interesse político por trás da não decretação do estado de emergência ou de calamidade pública?

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Enquanto um setor lucrativo para o estado, manter o turismo ileso dentro do contexto desse crime ambiental tem sido a prioridade visível dos governos federal e estadual. Lançado em maio pelo governo federal, o programa Investe Turismo, uma parceria entre o Ministério do Turismo, a Embratur e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) vai destinar para o estado de Pernambuco um aporte federal de R$ 2,3 milhões para incentivar o crescimento do setor. Caso fosse decretada a situação de calamidade pública, a publicização do turismo como um negócio rentável poderia ser abalado. Para as lideranças do movimento, isso afeta diretamente a não decretação tanto do estado de emergência quanto de calamidade pública.


“A gente sabe que o turismo aqui tem um peso, mais que um peso econômico. Existe uma prioridade por parte do governo do estado em priorizar o turismo. O turismo move grandes estruturas políticas. Além de estruturas econômicas o turismo no estado de Pernambuco move estruturas políticas. Existem interesses grandes por trás da não decretação de estado de emergência ou estado de calamidade pública em relação ao crime ambiental. Ao mesmo tempo que o governo denuncia a ineficiência de ação por parte do governo federal, o mesmo tampouco age para amenizar os impactos. Se um dos principais argumentos é de que não existe recurso para compensar os danos desse crime ambiental enquanto ele se resolve e se responsabiliza, decreta-se estado de calamidade pública. Isso não é inventado. Existe dano à saúde, ao meio ambiente e à alimentação das pessoas. Então o que está sendo aguardado? Esse decreto é segurado porque isso impactaria diretamente no turismo e eles não seriam beneficiários da reparação social e ambiental que vem daí”, denunciou a advogada da CPP.


Até o momento nenhum estado do nordeste decretou estado de calamidade pública. Apenas o estado da Bahia decretou estado de emergência nos municípios atingidos. Em Pernambuco só a prefeitura de São José da Coroa Grande decretou estado de calamidade. Enquanto o poder público joga com a burocracia em benefício próprio, as mulheres das comunidades pesqueiras, ribeirinhas e quilombolas estão à beira da fome.

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