Pesquisas com mulheres e dissidências durante o isolamento social
Muito mais que um problema de saúde
A principal preocupação de mulheres e dissidências não é contrair o vírus: é ter a comida diária, é saber como estão outras mulheres de seu entorno que estão longe, é poder ir ao supermercado sem serem violentadas pela polícia. Isso surgiu a partir de uma consulta realizada durante o isolamento social na Província de Córdoba, que logo foi replicada em outros territórios.
Julieta Pollo
Fotos: La Tinta
O isolamento social como medida para prevenir o contágio do covid-19 empurra mulheres, lésbicas e trans para uma situação de precarização e desproteção ainda mais aguda. Embora se ativaram as redes feministas e as estratégias de cuidado e solidariedade, a sustentabilidade de nossa vida se torna difícil entre a falta de rendimentos, a frágil situação habitacional, o transbordamento de tarefas de cuidado e as violências múltiplas. Algumas mulheres têm que suportar a reclusão com seus agressores em um contexto que acrescenta as situações de violência. Há uma curva que não se achata: o feminicídio é o único delito que não diminuiu durante a quarentena. Na Argentina, dos 124 feminicídios ocorridos em 2020, quase a metade ocorreu durante as medidas de isolamento[1].
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Neste contexto, CISCSA[2] promoveu uma consulta para conhecer os impactos das medidas de isolamento social preventivo e obrigatório em mulheres, lésbicas e trans da província de Córdoba. As respostas recebidas foram sistematizadas no relatório “Os efeitos da pandemia COVID-19: muito mais que um problema de saúde. Primeiras leituras”. Uma das preocupações mais mencionadas pelas mulheres, lésbicas e trans consultadas foi garantir a comida diária: 50% das pessoas que responderam a consulta viram seus rendimentos reduzidos ou não têm nenhum rendimento desde que se implementaram as medidas de isolamento. Algumas indicaram que, mesmo que não se encontrem desenvolvendo atividades excluídas pelas medidas de isolamento, saem para trabalhar porque não contam com outras possibilidades para garantir a comida diária. Esta situação ataca fortemente aqueles que, por sua vez, realizam tarefas de cuidado. Expressaram estar sobrecarregadas, sobretudo aquelas que não contam com ajuda de outras pessoas para enfrentar o cuidado de filhos e filhas, e de outras pessoas que estão sob sua responsabilidade.
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Outra das preocupações mencionadas está relacionada a viver situações de violência na rua ou no bairro. 30% disseram ter vivido ou saber de pessoas próximas que receberam maus tratos, abusos ou detenções arbitrárias por parte da Polícia de Córdoba. No caso particular de pessoas trans, travestis, lésbicas e não binárias, manifestou-se especial preocupação por maus tratos no ambiente familiar, expulsão do lar e situações de violência urbana.
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Uma grande quantidade de pessoas consultadas disse estar preocupada por não poder ajudar familiares e amigos que vivem longe. Neste sentido, muitas pessoas apresentaram preocupação com amigas, familiares ou vizinhas que se encontram em vínculos violentos, mas que não os reconhecem como tais. Por sua vez, fizeram referência a estarem atentas para conter e manter laços estreitos com outras mulheres. Embora a ampla maioria tenha afirmado ter informação sobre onde solicitar ajuda diante de uma situação de violência, própria ou alheia, as respostas institucionais dos organismos dispostos para atender estas situações foram descritas como irregulares ou escassas.
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“Entendemos que esta preocupação dá conta de que a violência contra as mulheres e identidades dissidentes está instalada como problema social, e não do âmbito privado. Também que a casa em si já não é vista como segura; então, frente ao pedido ‘Fique em casa’, nos perguntamos o que acontece se em casa está o agressor? Ativou-se certa sensibilidade social que está presente nas respostas das entrevistadas; elas expressaram ter informação sobre a onde ir no caso dessas situações. Embora os serviços não funcionem como queríamos, há muito mais recurso social e comunitário, e isso é muito interessante”, observaram no CISCSA. “Aí onde o Estado não está chegando há um sério problema, mas também há um montão de organizações e redes de pessoas que estão atentas e tentando acompanhar outras”.
www.latinta.com.ar
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Para esta consulta, CISCSA trabalhou com a Comissão Gêneros e Dissidências do Conselho Social da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nacional de Córdoba, integrada por organizações, como Las Alicias e Serviço para Ação Popular e Católicas pelo Direito a Decidir. “Lançamos a consulta poucos dias antes de se decretar o isolamento social com a intenção de ter informação, em primeira mão, a respeito do agravamento das desigualdades estruturais em que essas populações já vivem. As medidas de isolamento foram tomadas a partir de um olhar centrado na prevenção, que em seu momento visualizamos como necessária; porém, a partir das organizações sociais, comunitárias e feministas, entendemos que iam reforçar as violações de direitos e a situação de desigualdade de mulheres e dissidências, sobretudo as que pertencem a setores populares”, explicaram no CISCSA.
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Além de reunir informação situada com celeridade, a proposta abriu um canal de comunicação com aqueles que ativaram redes de acompanhamento e colocaram à sua disposição informação chave para orientar consultas, exigências e propostas para as autoridades locais. Elaboraram-se recomendações que foram apresentadas ao Centro de Operações de Emergência da Província de Córdoba e aos poderes do Estado provincial, sobre alguns aspectos que não estavam sendo considerados nas medidas tomadas. “Fizemos recomendações em relação ao não fornecimento de métodos anticonceptivos em centros de saúde e de elementos de higiene pessoal nos centros comunitários, a descontinuidade de tratamentos hormonais de pessoas trans, a falta de informação clara sobre os serviços de saúde, e destacamos situações de violência institucional contra, por exemplo, mulheres que iam fazer compras com suas filhas – para o qual é necessário a permissão de circulação – e receberam ameaças por parte da polícia; entre outras questões”, detalharam no CISCSA.
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O que começou como uma iniciativa de alcance local, rapidamente se expandiu pela potência das redes feministas. Para o interior da Argentina, a consulta foi adaptada por companheiras da Província de Mendoza, que fazem parte da Comissão Habitat e Gêneros de HABITAR Argentina. A proposta também cruzou as fronteiras e as companheiras da Coletiva Feminista para o Desenvolvimento Local, de El Salvador, a adaptaram e a aplicaram em seu país: neste momento, encontram-se analisando as respostas. Além disso, a consulta foi realizada em nível regional pela Rede Mulher e Habitat da América Latina, que CISCSA integra junto a outras organizações feministas. Foram recebidas respostas de mulheres, trans e lésbicas da Colômbia, Chile, Brasil, Bolívia, Guatemala, México, Peru e outros países latino-americanos. No caso da consulta regional, puderam ser ampliados os eixos abordados inicialmente no tocante a questões ligadas à saúde mental, organização e participação comunitária e política, e condições de habitat e moradia.
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[1] Relatório da organização feminista Mumalá.
[2] Centro de Intercâmbio e Serviços Cone-Sul Argentina